O olhar daquele menino de apenas 10 anos fixado na bela BMW preta traduzia todo seu fascínio por aquele estranho veículo mal equilibrado em duas rodas.
Inicialmente um pouco envergonhado, ele admirava aquela motocicleta de longe, tentando se fazer quase invisível ou desapercebido para o proprietário dessa maravilha mecânica.
|
A placa era inglesa e o “motociclo” (como se costumava chamar nessa época), estava carregado ao máximo, típico de quem estava fazendo uma longa viagem. As estradas naquele Rio Grande do Sul de 1968 eram quase todas de terra, assim como as estradas argentinas, uruguaias e chilenas. A poeira acumulada sobre a motocicleta era testemunho d a quilometragem adquirida ao longo dessas vias.
Durante vários minutos, o moleque rodeava a moto, verificava cada detalhe nela como se admirasse um brinquedo novo em uma vitrine com a certeza que não o poderia possuir. Timidamente o “guri” aproximou-se da moto para dar uma olhada nos instrumentos nessa BMW que se resumiam ao velocímetro e ao indicador de temperatura do motor. Nesse momento, o motociclista se dirigiu ao garoto em um espanhol misturado com algo de inglês:
- Gostas da moto? Perguntou ele.
Com um aceno afirmativo de cabeça, por medo de não ser compreendido, o menino preferia não admitir que o que lhe fascinava era a quantidade de bagagem presa à moto e as bandeirinhas e “adesivos de países e lugares” que abundavam em qualquer superfície disponível, como se fossem tatuagens no braço de um velho marujo.
Elas contavam uma história! Posteriormente, ficou evidente que viajar de moto e contar histórias seriam capitais na vida adulta daquele moleque curioso.
Hoje, com 54 anos de idade não lembro quanto tempo passei junto à motocicleta e se eventualmente “torrei” a paciência daquele amável viajante. O que lembro é essa imagem, de um homem atencioso, e paciente, como uma referência de um viajante aventureiro e desbravador. O sentimento de um garoto de 10 anos que sem mesmo saber, eventualmente decidiu ali mesmo que a viagem e a motocicleta assumiriam participações fundamentais em sua vida futura, tanto pessoal, quanto profissional.
Muitos anos depois, cumprida a profecia, em cada uma de minhas viagens pelo mundo guardo uma sensibilidade e atenção especial aos olhares e à curiosidade de crianças em relação a mim e à minha moto.
Uma motocicleta de viagem intriga os pequenos
Seduz, fascina, provoca o senso de descoberta, pois envolve elementos fundamentais de geografia e aventura associados ao desafio da tecnologia.
|
É muito comum que um pai se aproxime com seus filhos para conversar conosco quando viajamos, para saber de algo, perguntar de onde viemos, para onde vamos ou, simplesmente, para olhar, apreciar e analisar a moto. Ao mesmo tempo que vamos contando de onde somos e para onde viemos, ele vai utilizando esses elementos para passar informações a seu filho. Gosto sempre de propor ao inesperado visitante que coloque a criança sentada na sela da moto. A reação é sempre de entusiasmo e alegria.
Para os garotos de 10, 12 anos que vejo como reproduções daquele guri que um dia fui, gosto também de dar a eles a oportunidade de ligar a moto. Giro a chave, me certifico de que a marcha está em “neutro”, indico onde está o starter e espero pela reação. A surpresa, o pequeno susto e o sorriso que se seguem são prazeres únicos e grandes afagos em minha alma de viajante e de pai.
Procuro sempre levar lembrancinhas para crianças que encontrarei no caminho. Adesivos, chaveiros, broches, lápis e canetas fazem parte de meu “kit de boa vontade” onde procuro deixar nos lugares minha pegada cultural. Em países onde os recursos são escassos, sobretudo nas comunidades mais remotas, procuro levar material escolar, canetas, lápis e borrachas para entregar à garotada. Esses gestos de aproximação provocam uma reação positiva de retorno, não só dos garotos, como também da parte de seus pais e familiares. Uma vez, estando no camping de São Pedro de Atacama dei a oportunidade a um garoto de uns 8 ou 9 anos de se sentar na moto e ele ficou ali, como eu há muitos anos atrás, observando atentamente o painel de instrumentos, a largura do guidão, o conforto da sela e eu percebia nitidamente que ele estava sonhando acordado.
Quando desceu, dei a ele uma caneta e um lápis e o vi se afastar contente pela experiência intrigante de ter estado tão próximo daquela grande motocicleta. Algumas horas depois, no começo da noite, enquanto preparava um churrasco para meus companheiros de viagem, vejo à distancia chegar o mesmo garoto, desta vez acompanhado de seu pai.
O senhor se aproxima timidamente, cumprimenta a todos e me entrega um chapéu que tinha comprado como presente para mim em agradecimento à atenção que tinha dado a seu filho. Eu gentilmente protestei dizendo que não tinha feito nada de extraordinário.
Ele então me disse: Infelizmente não é normal que estrangeiros tenham esse tipo de atenção e carinho com nossos filhos.
- Portanto, venho, com este presente, lhe agradecer, assim o senhor também terá uma lembrança boa de nossa terra.
|
|
Uma prova de que a generosidade e amabilidade compensam em qualquer caso
A sessão de fotos com crianças junto à motocicleta, faz parte de cada uma de minhas viagens. É uma rotina que aporta uma alegria imensa a este viajante. Seus olhares, inquisitivos, admirativos e sonhadores fazem parte das memórias ao final de cada viagem quando volto a guardar minha moto na garagem.
Em muitos casos, contei com a ajuda desses pequenos seres cheios de esperteza e idéias, pois ninguém conhece melhor seu território, seu bairro, sua região, do que eles mesmos.
Crianças são puras de sentimento e suas emoções, transparentes. Seu entusiasmo em relação a nós, seres viajando em grandes veículos de duas rodas transcende os livros de aventura que eles normalmente devoram e os aproxima um pouco, por nosso intermédio, da fantasia e do mundo imaginário e hiper-realista de suas infâncias.
Ajudá-los a sonhar é mais que uma gentileza, é uma obrigação, um dever de qualquer adulto.
Uma vez, voltando de Merzouga, onde se encontram as grandes dunas vermelhas no sul do Marrocos, eu estava em pleno deserto do Sahara e não havia estrada definida para seguir.
Tomei o caminho que achava mais apropriado e, fascinado pela beleza do deserto acabei me perdendo do restante de meu grupo de amigos.
O resultado é que acabei rodando 3 horas sem ter exatamente certeza se conseguiria encontrar a estrada asfaltada que, um pouco mais ao norte, cruzava a imensidão do deserto. Com gasolina e água suficientes, elementos essenciais nesse ambiente, fui mantendo no mesmo nível a tranqüilidade e o rumo norte de minha bússola, para tentar interceptar, cedo ou tarde, a estrada que vai da capital, Rabat, a Essauíra no sul do Marrocos..
O problema ali era a areia solta que forçava minha pesada GSA a enterrar a roda dianteira. Odeio essa moto na areia! Seu nariz é muito pesado! Ao passar por um pequeno oásis, vejo um grupo de tuaregues com seus camelos e decido pedir informações. Um deles, um garoto de uns 12 anos, vestindo a característica indumentária de cor índigo que faz este povo ser conhecido como os “homens azuis” pois o tecido, ao descolorir, lhes mancha a pele, correu até onde eu estava.
Perguntou-me em francês se eu o poderia levar até a vila, a 25 quilômetros dali e assim ele me mostraria o caminho de volta ao asfalto. Disse a ele que teria dificuldade de levá-lo, pois já era difícil em “solo” na moto, com garupa seria praticamente impossível por causa da instabilidade da superfície arenosa.
Ele sorriu um sorriso largo e divertido, e disse-me:
Comigo, “patrão”, o senhor não terá que passar pelos trechos de areia solta. Tenha certeza disso.
Na seqüência, sentou-se na garupa como quem monta em um camelo e apontou com a mão esquerda.
- Por ali, decretou. E eu, resignado, diligentemente obedeci.
Fizemos 18 km de deserto juntos e ele me conduziu brilhantemente por caminhos de solo firme onde pudemos confortavelmente andar entre 50 e 60 km/h. Já no asfalto, ele deixou transparecer toda sua alegria e gritava a plenos pulmões, iiuhhhuuuuu!!! Enquanto eu, agradecido e para retribuir, acelerava a GSA a quase 150 km/h já sobre um asfalto de boa qualidade.
Ao passarmos na estrada por um microônibus cheio de passageiros, ele gritou algo em árabe ao motorista.
|
Perguntei o que tinha dito. Ele simplesmente respondeu que antes de mim tinha passado esse microônibus e eles, por ter o carro cheio de turistas europeus, tinham se recusado a lavá-lo para não incomodar os estrangeiros. Deixei-o no café do vilarejo e ele, para mostrar sua gratidão, convidou-me a tomar um chá de menta, na mais pura tradição berbére.
Consumimos nossos chás tranquilamente, no silêncio de uma conversa sem palavras, como só as pessoas destes lugares remotos sabem fazer.
Quando decidi continuar meu caminho, perguntei a ele por curiosidade o que ele tinha exatamente dito ao motorista do ônibus quando passamos com a moto.
Ele então repetiu, desta vez em francês:
...Aqui, vou mais rápido! Tão rápido quanto o vento levando consigo a areia do deserto!
Mais uma prova que a motocicleta muitas vezes nos faz confundir fantasia e realidade, exatamente como fazem as crianças, de qualquer idade, em qualquer lugar do mundo.
Fonte: Ricardo Lugris (Rotaway)